quarta-feira, 21 de maio de 2008

Elementar, meu caro Yamasaki

Falas em "verbetes" compõem quase todo "O Arquiteto", texto teatral de Rui Tavares
UM DEFEITO comum nos filmes antigos, e que aparece em algumas peças de teatro até hoje, é aquele tipo de diálogo que eu chamaria "fique por dentro", ou "fala em verbetes". Não sei se já inventaram nome melhor, mas funciona mais ou menos assim:O filme, ou a peça, mostra Napoleão em Santa Helena. Está tudo perdido, o velho imperador amarga seu exílio; chega a hora de fazer o balanço da própria vida. Batem à porta, é um visitante estrangeiro -e o diálogo começa. "Veja", diz Napoleão, "esta é a espada que usei em Waterloo". O visitante faz então uma pergunta absurda: "Waterloo? Sua última batalha, em 1815, na Bélgica?". Claro que Napoleão dirá que sim. O diálogo não tinha outra função a não ser rememorar o público que por acaso tivesse algumas dúvidas sobre o acontecimento. Falas desse tipo, em "verbetes", compõem quase que a totalidade de "O Arquiteto", texto teatral do historiador português Rui Tavares, que acaba de ser publicado pela Martins Fontes. Mesmo assim, é uma leitura muito interessante. Uma coisa é um filme histórico cheio de diálogos óbvios envolvendo Napoleão. Mas nem todo mundo tem informações na ponta da língua a respeito de Minoru Yamasaki (1912-1986). Foi, provavelmente, o arquiteto mais azarado do século 20. O livro de Rui Tavares funciona como um ensaio sobre os desastres e ironias de sua carreira, que é também um exemplo de tudo o que pode dar errado quando se quer fazer uma coisa boa. O primeiro ato de "O Arquiteto" se passa no dia 16 de março de 1972. A data é bastante conhecida pelos historiadores da arte e do urbanismo do século 20. Marca, segundo o teórico e arquiteto Charles Jencks, "o dia em que morreu a arquitetura moderna". Foi quando se deu a implosão, em St. Louis, de um vasto conjunto residencial chamado Pruitt-Ingoe, teoricamente uma obra-prima de planejamento urbano, construída no início da década de 50. O criador do Pruitt-Ingoe era Minoru Yamasaki. Desenhou 33 prédios de 11 andares, retinhos e iguais, prevendo tudo quanto é tipo de área comunitária, parque infantil, espaço de circulação... Uma típica superquadra, em resumo. Em poucos anos, aquilo virou uma favela irrecuperável, e depois de décadas de assassinatos, estupros, tráfico de drogas, miséria e degradação, as autoridades resolveram deitá-la abaixo. Os pós-modernistas vibram diante do fracasso daquela arquitetura racionalista, uniforme, retangular e autoritária. Na peça de Rui Tavares, Minoru Yamasaki se defende. Tinha planejado as coisas do melhor jeito possível. O conjunto residencial era dividido em duas partes: uma para brancos, outra para negros. Acontece que alguns anos depois foi votada uma lei antidiscriminação no Estado do Missouri. Os brancos não quiseram se misturar nos mesmos prédios. Todo o conjunto desvalorizou. A falta de manutenção era total. No calor, as janelas não se abriam; o jeito era quebrá-las. O sistema de elevadores, que funcionava mal desde o primeiro dia, parou de vez. Mas as mulheres tinham medo de usar as escadas, porque podiam ser estupradas. No fim, os empregados das empresas de água e gás não se arriscavam mais a entrar nos edifícios. Culpa da arquitetura moderna? Talvez não. Ingenuidade autoritária, certamente: como pensar em construir prédios imaculados e perfeitos numa sociedade segregada e violenta? Depois do fracasso do Pruitt-Igoe, Minoru Yamasaki retomou a sua carreira. Construiu obras muito importantes na Arábia Saudita, onde o pai de Osama Bin Laden era o principal empreiteiro da família real. O segundo ato mostra Yamasaki no momento de sua volta por cima, um ano depois. Estamos em 1973. Ele inaugura um novo conjunto de prédios e comemora com um engenheiro de origem árabe, Fazlur Rahman Khan, um grande feito técnico: graças a um sistema de estruturas tubulares, os edifícios construídos são capazes de resistir ao impacto até de um Boeing 707, o maior avião de passageiros da época. Tratava-se do World Trade Center. "World Trade Center? Aqueles prédios que, em 2001...?" Exatamente. Os diálogos de "O Arquiteto" sofrem de um tom "elementar, meu caro Watson". Mas a peça vale ser lida: a realidade nunca é tão elementar assim.
MARCELO COELHO para a folha de são paulo

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